REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO: UM PAÍS LONGE DA PAZ

REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO: UM PAÍS LONGE DA PAZ

Foto: Mundo por terra/Reprodução: Flickr

Os problemas enfrentados pela República Democrática do Congo (RDC) vão muito além dos conflitos civis, mas certamente são resultados dos anos de confronto. As guerras no país africano trouxeram consequências que hoje confirmam cada vez mais a necessidade urgente de ajuda humanitária aos congoleses. A população tem um dos quadros mais graves do mundo de insegurança alimentar aguda e convive com os impactos da Covid-19.

A RDC também tem um alto número de deslocados, que fogem pelas fronteiras em busca de uma vida melhor nos territórios vizinhos ou países mais longínquos. E apesar da riqueza em recursos naturais como minérios, o país tem a terceira maior população de pobres do mundo, atingindo 73% dos congoleses vivendo com menos de US$ 1,90 por dia (EURONEWS, 2021).

Estas e outras temáticas serão abordadas neste artigo, mostrando o contexto histórico no país africano (passando pela Antiguidade, o domínio belga, a independência e os dias atuais) para entender os motivos que levaram a RDC a esta situação e as mudanças ocorridas ao longo dos séculos. Primeiramente, é preciso saber as informações básicas sobre a RDC para, a partir de sua localização geográfica, compreender certos fatos acerca da sua história.

Onde está a RDC?

A República Democrática do Congo é o segundo maior país da África (atrás apenas da Argélia) e está localizada na região central do continente, com extensão territorial de 2.345.409 km2. Sua população é estimada em 93,7 milhões de habitantes (COUNTRY METERS, 2021).

Mapa da RDC. Imagem: Macua Blogs

O regime de governo é o semipresidencialista. O presidente e chefe de Estado é Félix Tshisekedi (desde 2019) e o cargo de primeiro-ministro e chefe de governo é ocupado (desde abril deste ano) por Jean-Michel Sama Lukonde (WIKIPEDIA, 2021).  

Faz fronteira com nove países: República Centro-Africana, Sudão do Sul, Uganda, Ruanda, Burundi, Tanzânia, Zâmbia, Angola e República do Congo [1]. O francês é o idioma oficial e a capital é Kinshasa. (Idem, 2021).

Tempos de colônia

O histórico de sofrimento dos congoleses vem deste a Antiguidade. A bacia do Rio Congo era ocupada pelo povo Bantu no século XIII e os bantos formaram o Reino do Congo, até que os portugueses, primeiros exploradores do local, descobriram o território no final do século XV e logo mostraram seus interesses econômicos na região a partir do comércio de escravos. A resistência das tribos na época fez os colonizadores lançarem ofensivas militares, culminando na morte do Rei Antônio III (ADAM, 2019, p.5).

As dramáticas condições de ida da população perduravam. No século XIX, mais precisamente em 1885, Leopold II, então Rei da Bélgica, recebeu o território após a Conferência de Berlim decidir pela divisão de colônias africanas entre as potências europeias e batizou-o de Estado Livre do Congo. Leopold II considerava o território como uma posse pessoal e promoveu a exploração de escravos para fazer fortuna com o comércio de marfim e borracha, entre outros recursos disponibilizados no local (Idem, 2019, p. 5).

Vista da capital Kinshasa. Foto: Michael Jheddad/Reprodução: Flickr

A jornalista Natalia da Luz utiliza de maneira oportuna um depoimento do professor de Ciências Sociais Kabengele Munanga, da Universidade de São Paulo e nascido no Congo para descrever a situação e os interesses de Leopold II à época, usando como cúmplice o aventureiro inglês Henry Morton Stanley (POR DENTRO DA ÁFRICA, 2014).

“(..) o rei Leopoldo II, convidou H.M.Stanley e confiou-lhe a delicada missão de negociar a submissão dos chefes locais, por meio de tratados de comércio, amizade e protetorado, o que foi conseguido sem que os chefes locais soubessem que se tratava, na realidade, da implantação de uma soberania estrangeira em seus territórios e não de amizade e protetorado.” (POR DENTRO DA ÁFRICA, 2014).

As atrocidades de Leopold II no continente africano logo chegaram ao conhecimento da imprensa ocidental no início do século XX, graças a uma denúncia do irlandês e cônsul britânico Roger Casement. A consequência foi que, em 1908, houve uma revisão de dispositivos da Conferência de Berlim e o “Estado Livre do Congo”, que na prática era uma propriedade privada de Leopold II, deixou de ser uma posse da Coroa e foi assumido pelo Parlamento da Bélgica, tornando-se uma colônia do país, sendo rebatizada de Congo Belga (Idem, 2014).

A independência

O Congo foi colônia belga até 1960, quando se tornou independente e passou a se chamar República Democrática do Congo. Patrice Lumumba foi eleito o primeiro-ministro no mesmo ano, mas quatro meses depois foi deposto por um golpe militar liderado Joseph-Désiré Mobutu. Apoiado pela própria Bélgica e pelos Estados Unidos, ele articulou naquela década uma ditadura que duraria mais de três décadas, enquanto seu antecessor foi morto no ano seguinte, em 1961 (ABRAÇO CULTURAL, 2021).

O pesquisador angolano, Patrício Batsîkama, especialista em Reino do Congo, faz a seguinte ressalva: a emancipação nem sempre se traduz de fato em independência. Pelo menos foi assim na RDC.

“Expulsar o colonizador das nossas terras foi um bom início. Mas não nos tornamos independentes de fato. De maneira geral, independência é simultaneamente política, econômica e cultural. Ainda não se conquistou de fato nenhuma dessas. Tudo foi uma simulação. Por isso, é importante repensar nas estratégias endógenas de nos tornar “independentes de fato.” (Idem, 2021).

República do Zaire

A mudança de nome foi uma das medidas tomadas pelo ditador Joseph-Désiré Mobutu, em 1971, para eliminar a todo custo qualquer influência colonial belga, mudando inclusive a capital Léopoldville para Kinshasa. A princípio, poderiam ser inciativas importantes para resgatar a identidade nacional do historicamente sofrido povo congolês. Mas tratava-se, claramente, de um pano de fundo para que Mobutu quisesse eliminar a influência externa para usar a máquina pública e riquezas naturais para interesses pessoais (ADAM, 2019, p.30).

Ditador Mobutu. Foto: Goodread Bio/Reprodução: Flickr

Pode-se considerar que o início da década de 70 foi marcado no Zaire por uma calmaria econômica à custa dos recursos minerais dos quais o país dispunha e que fez Mobutu multiplicar de forma expressiva seu patrimônio nos 32 anos que esteve no poder. Mas a crise do petróleo de 1973, que provocou a queda de preços de outras commodities, fez com que o cenário favorável se revertesse (HONORATO, 2019).

A situação perdurou pela década de 70 e, desta forma, surgiram as insatisfações com Mobutu e a oposição no país começou a enxergar uma luz no fim do horizonte e tentou tomar o poder, mas sem qualquer êxito, por meio da Guerra dos 80 dias e da Guerra do Shiba. No decênio, seguinte, o ditador tentou dar sobrevida à economia zairense, mas não alcançou o resultado esperado. A queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética complicaram ainda mais a situação de Mobutu, que seguia tentando promover reformas para se manter no poder, mas o fracasso anunciado foi sucedido por um dos períodos mais violentos no Zaire (Idem, 2019).

Guerras do Congo

A RDC sofre até os dias atuais as sequelas das duas guerras que marcaram a nação. A primeira delas ocorreu de outubro de 1996 a maio de 1997 e começou a partir de uma articulação da oposição para derrubar o ditador Mobutu, liderada por Laurent Kabila, diante da insatisfação cada vez mais crescente com sua autocracia. O país mergulhava em uma crise econômica e o apoio de Mobutu aos hutus, responsáveis por matar 800 mil tutsis em Ruanda [2], agravou a revolta dos adversários, mas o conflito envolveu outros países vizinhos. O saldo foi de 200 mil mortos (SILVA, 2011, p.98).

Ao assumir o país, Kabila rebatizou o Zaire, que passou a se chamar novamente República Democrática do Congo, apoiado pelo então movimento organizado por países vizinhos (Uganda, Angola, Ruanda, Eritreia, Etiópia e Zimbábue) que, com base em trajetórias comuns no socialismo e panafricanismo e considerados esquerdistas, queriam destituir do poder aqueles considerados “vergonhosos” para o continente. Neste contexto, Kabila seria a pessoa ideal no Zaire para ser o cúmplice do plano. Coube a Paul Kagame, então vice-presidente de Ruanda, da etnia tutsi, invadir o Zaire para ajudar a tomar o governo de Mobutu e o poder foi assumido por Kabila (Idem, 2011, p.100).

Estátua de Laurent Kabila.Foto: BK/Reprodução Flickr

O fim da Era Mobutu, contudo, não significou a chegada da tão esperada paz tampouco a resolução dos conflitos na RDC. Kabila, que se autodeclarou presidente do país em 1997, não teve vida fácil pela frente. Bastou a chegada ao poder e a relação entre ele e os aliados Ruanda e Uganda começou a ter problemas, pois os dois vizinhos logo articularam para derrubar o novo comandante congolês do poder. Um ano depois, em 1998, começaria a Segunda Guerra do Congo, conhecida também como Guerra Mundial Africana, por ter registrado o maior número de mortes em um conflito depois da Segunda Guerra Mundial, com estimativas em torno de 5,4 milhões de mortos (AFFONSO E ROSSETTO, 2016).

No segundo conflito no Congo, Kabila teve apoio de Angola, Namíbia e Zimbábue. Do outro lado, Uganda e Ruanda. O país foi transformado em um verdadeiro campo de batalha, principalmente no Leste. Tentativas de acordos de paz foram feitas para conter o confronto, mas o conflito ocorreu com força total até 2002, quando foi assinado um tratado de paz em Pretória (África do Sul). Tropas estrangeiras deixaram o país e, a partir daí, a RDC começou a adotar um caminho de transição para a democracia. Em 2006, Joseph Kabila, que assumiu o poder em 2001, depois do assassinato de seu pai, Laurent Kabila, foi eleito presidente de forma democrática (Idem, 2016).

Dias atuais

Os congoleses ainda sofrem as consequências das duas guerras e ainda convivem com conflitos civis em diversas províncias, embora em menor proporção, publicidade e intensidade em relação àqueles que começaram há mais de duas décadas. Mas o sofrimento da população ainda perdura com a situação de extrema pobreza, deslocamentos, separação de parentes, abusos e violência sexual e a tirania imposta por militantes do governo. Pode-se dizer também que a ajuda humanitária à RDC tem diminuído expressivamente nos últimos anos, o que faz com que o país seja esquecido pela comunidade internacional (CICV, 2020). 

Crianças congolesas assistida pelo CICV. Foto: CICV/Reprodução: Flickr

Alguns rebeldes constantemente também espalham medo e pânico, principalmente em vilarejos pobres do país. Paula (2019, p-5) relatam uma dessas experiências quando esteve na província de Goma, na RDC.

“Foi num anoitecer daquele março de 2010. Pascal era zagueiro e se preparava para receber a bola em uma partida com os amigos, mas o apito soou. O som que todos ali temem escutar não é apito de juiz que marca falta ou impedimento, mas o sinal que anuncia a chegada de rebeldes. É assim que eles invadem as vilas. Quando ouvem o apito de longe, os moradores já não têm muito tempo para fugir. O número de invasores aumenta rapidamente. Eles saem de dentro da mata, num verdadeiro esquema de guerra para que ninguém esteja tão previamente preparado que consiga se salvar.” (PAULA, 2019, p.5).

Outra questão grave na República Democrática do Congo é o quadro de insegurança alimentar grave, ou a situação de fome extrema. São mais de 21 milhões de pessoas que vivem sob desnutrição, das quase 43% crianças, que geralmente vivem em áreas pobres e foram abandonadas (FRATERNIDADE SEM FRONTEIRAS, 2021). Segundo a Organização das Nações Unidas (2021), são 27 milhões de congoleses, um quarto da população do país, “sofrem com a emergência aguda de falta de alimentos”. Neste contexto, o número de habitantes que se encaixam na condição de insegurança alimentar é o maior no continente africano.

A onda de conflitos nos últimos anos provocou, ainda, um aumento do número de refugiados em busca de uma vida melhor em outros territórios. De 2017 a 2019, mais de 5 milhões de congoleses fugiram da RDC. A situação humanitária é uma das mais complexas do mundo e, pelo que tudo indica, está longe de ter uma solução. Por outro lado, o país também recebe refugiados de guerra de outras nações africanas (ACNUR, 2021).

E para agravar esse quadro, o país também conviveu com a pandemia da covid-19 e todos os problemas citados nesse artigo foram agravados diante da precária estrutura do país para lidar com a questão. Entidades internacionais ligadas aos direitos humanos que atuam na RDC enfrentam a falta de recursos vindos de doações internacionais, que são insuficientes para contemplar todos os congoleses. São inúmeros motivos que levam a concluir que, mesmo com o fim das guerras de fato, o país ainda vive com iminentes ameaças de conflitos violentos, que no passado contribuíram significativamente para os problemas que a RDC enfrenta atualmente. Tudo isso mostra que a comunidade internacional precisa, urgentemente, olhar os congoleses e outros povos da África Central com mais atenção.

NOTAS

[1] – Apesar dos nomes parecidos, República do Congo e República Democrática do Congo são países diferentes.

[2] – O ditador Mobutu apoiou os hutus, responsáveis pelo genocídio de Ruanda, um dos massacres mais dramáticos da história da humanidade.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS    

ABRAÇO CULTURAL. Independência da República Democrática do Congo. Disponível em <https://www.abracocultural.com.br/independencia-rdc-congo/>. Acesso em 14/12/2021.

ACNUR. República Democrática do Congo. Disponível em <https://www.acnur.org/portugues/republica-democratica-congo-rdc/>. Acesso em 16/12/2021.

ADAM, Dr. País mais rico e mais pobre do Congo: Uma História de Ganância, Terror e Heroísmo na África Colonial. 2019. Edição do Kindle.  

AFFONSO, Giulia de Conto e ROSSETTO, Maria Soares. O conflito no Congo – a matriz histórico-estrutural. Disponível em <https://www.ihu.unisinos.br/185-noticias/noticias-2016/557125-o-conflito-no-congo–a-matriz-historico-estrutural>. Acesso em 15/12/2021.

COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. O conflito na República Democrática do Congo. Disponível em <https://www.icrc.org/pt/o-conflito-na-republica-democratica-do-congo>. Acesso em 11/12/2021.

COUNTRY METERS. Democratic Republic of the Congo. Disponível em  <https://countrymeters.info/pt/Democratic_Republic_of_the_Congo>. Acesso em 18/12/2021

EURONEWS. Democratic Republic of Congo. Disponível em <https://www.euronews.com/news/africa/democratic-republic-of-congo>. Acesso em 10/12/2021

FRATERNIDADE SEM FRONTEIRAS. Órfãos do Congo. Disponível em <https://www.fraternidadesemfronteiras.org.br/portfolio/orfaos-do-congo/>. Acesso em 13/12/2021

HONORATO, Felipe Antônio. República Democrática do Congo: um conflito migratório. Disponível em <https://alacip.org/cong19/8-antonio-19.pdf>. Acesso em 11/12/2021.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU alerta para piora de crise alimentar na República Democrática do Congo. Disponível em <https://news.un.org/pt/tags/republica-democratica-do-congo>. Acesso em 12/12/2021.

PAULA, Jéssica. Estamos aqui: Histórias das vítimas de conflito no leste africano. 2019. Edição do Kindle.

POR DENTRO DA ÁFRICA. República Democrática do Congo: a independência do país que viveu um dos mais cruéis regimes coloniais da África. Disponível em<http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/republica-democratica-congo-54-anos-de-independencia-pais-que-viveu-um-dos-mais-crueis-regimes-coloniais-da-africa>. Acesso em 13/12/2021.

SILVA, Igor Castellano da Silva. Guerra e construção do Estado na República Democrática do Congo: a definição militar do conflito como pré-condição para a paz. Disponível em <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/31730/000784798.pdf?sequence=1>. Acesso em 15/12/2021.

Pablo de Deus Ulisses

Jornalista e estudante do 5° semestre de Relações Internacionais na Estácio de Sá.

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