A DIPLOMACIA CULTURAL NA POLÍTICA EXTERNA FRANCESA 

A DIPLOMACIA CULTURAL NA POLÍTICA EXTERNA FRANCESA 

A França é internacionalmente conhecida por sua diversidade cultural única, que se manifesta em diversas áreas, como arte, gastronomia, arquitetura e literatura, e esse poder cultural tem sido inserido também nas relações diplomáticas francesas. Considerando o atual cenário mundial, dada as diversidades inerentes aos diferentes Estados que se relacionam, é importante multiplicar os métodos disponíveis para consolidar a presença internacional. 

Desse modo, a diplomacia cultural passa a ter cada vez mais atualidade e urgência, podendo trazer importante contribuição no desenrolar da política externa, deixando a cultura operar como facilitadora nas relações internacionais.  O presente artigo abordará os aspectos da diplomacia cultural francesa, com destaque para sua atuação nos países africanos e na divulgação mundial da francofonia.

CULTURA E DIPLOMACIA  

O termo “cultura” possui diversas definições a partir do senso comum de cada pessoa, podendo ser abordada no campo da antropologia. Nas palavras de Taylor :  

“Cultura ou Civilização, tomada em seu sentido mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume ou quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade” (TAYLOR, apud CASTRO, 2005, p. 69). 

No atual mundo globalizado, a cultura pode ser entendida tanto como uma ferramenta de diplomacia, quanto como um campo das Relações Internacionais, em que a diplomacia cultural dependerá do componente da diplomacia clássica em sua atuação (Kozymka, 2014). Esse fenômeno foi consolidado na conjectura do mundo pós-Segunda Guerra Mundial, somada ao movimento eurocentrista e ao choque entre o Sistema Colonial ainda fortemente presente à época, com o crescente movimento de Direitos Humanos. A diplomacia cultural irrompeu como uma chave para entender as interações políticas no âmbito internacional da época,  articulando as atividades entre a diversidade dos países naquele Sistema Internacional.  

Nas palavras de Cummings (2003), a diplomacia cultural pode ser definida como a “troca de ideias, informação, arte e outros componentes da cultura entre nações e seus povos para fomentar entendimento mútuo” [1] (Cummings, 2003, p.1, tradução nossa). Dessa forma, considerando que o campo cultural passou a ultrapassar os limites do território de um Estado, a diplomacia cultural tornou-se um importante instrumento para manter a união e coesão da identidade de uma sociedade.  

Cabe aqui fazer uma distinção entre diplomacia cultural e relações culturais internacionais. A primeira é executada exclusivamente pelo Estado ou suas agências, como ferramenta para sua projeção internacional a partir de valores inerentes ao poder público. Já a segunda trata de iniciativas fomentadas por particulares cuja finalidade é a própria cultura em si (Menezes, 2015).  

DIPLOMACIA CULTURAL E SOFT POWER    

Para a análise deste conceito, é imperioso abordar o entendimento sobre Hard Power e Soft Power nas teorias do campo de Relações Internacionais: o Hard Power engloba o poder por meio da coerção mediante, principalmente, a capacidade e poderio militar. Já o Soft Power está ligado às informações divulgadas no exercício de influência, com poder de forma envolvente e sugestivo (FIGUEIREDO, 2010).  

Dentro do conceito de soft power, o governo tem papel central na execução da diplomacia cultural. Isso se dá mediante políticas e estratégias ligadas à globalização, estruturadas a partir da cultura e seus meios de expressão, com instrumentos aptos à construção da imagem do Estado no Sistema Internacional. Nesse sentido, o caminho diplomático cultural francês ganhou forma em 1945, com a criação da Direction Générale des Relations Culturelles (Direção-Geral das Relações Culturais), seguindo-se do Ministério da Cooperação em 1961. Ambos os institutos foram criados visando as relações culturais entre a França e suas ex-colônias, como esse tipo de estratégia neocolonial, o que foi denominado como Françafrique (SAINT-LAURENT, 2019).   

O objetivo se deu na proximidade com as ex-colônias francesas, buscando a manutenção de sua influência e acesso aos territórios, às commodities e aos mercados africanos, diante do enfraquecimento francês após a Segunda Guerra Mundial, seguido dos movimentos de independência africana. Atualmente, a diplomacia cultural francesa é exercida predominantemente pelo MEAE – Ministério da Europa e Relações Exteriores, que promove a ação cultural francesa no exterior, a partir de eventos culturais e centros de ensino com foco na difusão da cultura com organização de festivais internacionais, reforçando os laços entre os países participantes (MINISTÈRE DE L’EUROPE ET DES AFFAIRES ÉTRANGÈRES, 2015). 

A REPATRIAÇÃO CULTURAL AFRICANA 

Explicando a diplomacia cultural da França voltada à África, cabe uma breve exposição das circunstâncias históricas que evidenciaram a necessidade de idealização do projeto francês em sentido à cultura. Note-se que o continente africano se encontrava imerso em uma rede administrativa colonial com a crença no pensamento da necessidade de tutela das colônias sobre os povos colonizados.  

Diante das injustiças culturais ocorridas e a opressão decorrente dos períodos colonial e neocolonial, o trauma das sociedades exploradas veio à tona no seu processo de independência, criando um ruído na imagem das potências colonizadoras. Neste sentido, foi elaborado em 1964, pelos Estados-membros da Organização da União Africana (OUA), o Manifesto Cultural Pan-Africano. O documento discute a herança cultural africana, declarando a importância do seu patrimônio cultural na preservação de sua identidade:

“A preservação da cultura salvou os africanos das tentativas de sua transformação em povos sem alma nem história. (…) Esta é a razão pela qual a África dedica tanto cuidado e atribui tanto valor à recuperação do seu patrimônio cultural, à defesa da sua personalidade e à criação de novos ramos da sua cultura.” (ORGANIZAÇÃO DA UNIÃO AFRICANA, 1969, p. 3, tradução nossa) 

Levando isso em consideração, o atual governo Macron tornou-se reconhecido por sua abordagem multilateral nas relações externas francesas, buscando desvincular-se das concepções tradicionais e imperialistas e reaproximar as relações entre a França e os países africanos. O Presidente anunciou sua vontade de restituir o patrimônio cultural africano aos seus países de origem e a necessidade da França na elaboração de projetos práticos nesse intento (SAINT-LAURENT, 2019). O governo tem anunciado recentemente a ideia de um afastamento da postura neocolonial na busca de um melhor relacionamento França – África.

Presidente da França junto com os representantes dos governos do G5 – Sahel (Mauritânia, Níger, Burkina Faso, Mali e Chad), Alemanha, Itália e Espanha.

As ações de repatriação cultural têm sido guiadas pelo princípio de que a reestruturação de países colonizados e o fim de legados de exploração estão atrelados diretamente à preservação de seu patrimônio. Segundo Jubilut (2006), a identidade cultural, que está integrada ao patrimônio cultural, permeia a construção social de uma comunidade, sendo essencial na formação da coluna central social de uma nação, relacionado com o tripé população, território e monopólio legítimo do uso da força. Dessa forma, a restituição e preservação da herança cultural de um Estado fica atrelada a identidade nacional, sendo instrumento essencial para a promoção do desenvolvimento da nação. Aplicando os conceitos acima compreendidos, depreende-se que a diplomacia cultural e a cooperação estão inseridas nos propósitos pós-coloniais de reestruturação africana, que vem sendo conduzido em especial pela UNESCO, em apoio às instituições africanas (Jubilut, 2006). 

Além disso, a Convenção de Haia de 1954 pode ser considerada precursora na criação de proteção legal de objetos culturais, sendo motivada pelo cenário pós-Segunda Guerra Mundial. A Convenção expõe em seu art. 4 a seguinte disposição de respeito aos bens culturais: 

As Altas Partes Contratantes comprometem-se outrossim a proibir, a impedir e a fazer cessar, quando necessário, qualquer ato de roubo, de pilhagem e de apropriação indevida de bens culturais, qualquer seja a forma de que venham revestidos esses atos (UNESCO, 1954, p. 2). 

A DIFUSÃO DA FRANCOFONIA 

Segundo Arndt (2006), A Francofonia passou a tornar-se o foco da Política Externa a fim de transmitir os valores franceses, uma vez que a prática diplomática se dava de forma predominante pelo inglês (Arndt, 2006). Trata-se da promoção da língua francesa e os valores da sua cultura. O objetivo pode ser resumido como o reestabelecimento da França como grande país no Sistema Internacional, na busca em colocar a língua francesa, como repositório valorativo cultural, para efetivar a coesão e fortalecer a posição do país nas cúpulas multilaterais.  

Esta foi considerada uma ferramenta de soft power, sendo um programa que buscou como prioridade o foco nas colônias francesas, bem como seus territórios com mandato, estendendo-se, ainda, às nações emergentes na América Latina, somando-se ao olhar mundial para a França como líder intelectual. Nas palavras de Nye (2004) sobre a política de promoção cultural adotada pela França, na língua dos intelectuais e da diplomacia para restaurar a imagem nacional : “O governo francês procurou reparar o prestígio destruído da nação promovendo sua língua e a literatura através da Aliança Francesa, criada em 1883.”(NYE, 2004, p.100, tradução nossa) [2]

Mapa da Francofonia no mundo

A Organização Internacional da Francofonia (OIF) foi fundada em 1970 com o objetivo de integração internacional, apoiando os governos parceiros na promoção da língua francesa. Trata-se de um dispositivo institucional dedicado à promoção do francês e à implementação da cooperação política, educacional, econômica e cultural . Os números atuais demonstram o sucesso do projeto de avanço da francofonia. Em 2022, a estimativa do número de falantes era de 321 milhões distribuídos pelos cinco continentes. Ressalta-se que atualmente o francês é considerado como a língua da diplomacia, sendo a língua oficial de importantes organizações internacionais, tais como ONU, OCDE, OTAN, União Europeia, UNESCO e Comitê Olímpico Internacional (FRANCOFONIA BRASIL, 2023). 

Estudos demonstram que são 29 países que falam o idioma francês, sendo o único idioma, além do inglês, presente em todos os continentes, apresentando uma expansão que vai além dos falantes nativos. Diante do rápido crescimento demográfico da África francófona, a projeção é que o mundo francófono será o espaço linguístico mais dinâmico do mundo, podendo se tornar idioma predominante em 2050 (FRANCOFONIA BRASIL, 2023). 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma vez que o intercâmbio cultural possibilita a transferência de um povo a outro de experiências, ideias e patrimônios, ele ajuda a enraizar, consolidar e preservar uma atmosfera que promove o entendimento entre os estados, já que a cultura consegue agregar aos instrumentos da diplomacia. Desde a Guerra Fria, os estudos acerca desse tema têm ganhado notoriedade, principalmente em decorrência das vertentes ideológicas, políticas e tecnológicas presente entre as potências em conflito.  No atual cenário, a França, que foi pioneira nesse movimento, tem sido um dos maiores exemplos de aplicação da diplomacia cultural, com atuação em diversos países ao redor do mundo. Sua atuação tem se baseado no incentivo à diversidade cultural, sendo referência na aproximação diplomática entre países, através das artes e culturas.

Resta claro que o país enxerga o poder da opinião como uma ferramenta de ação diplomática na busca de conquistar um lugar especial no cenário internacional. Trata-se de um instrumento que facilita e favorece outros temas da política externa, estando, assim, lado a lado com os demais poderes, como militar e econômico.

REFERÊNCIAS 

ARNDT, Richard T. The first resort of kings: American cultural diplomacy in the twentieth century. Dulles: Potomac Books, 2006.

CASTRO, Celso. Evolucionismo cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 

CUMMINGS, M; C. Jr..Cultural Diplomacy and the United States Government: A survey. Washington, D.C: Center for Arts and Culture, 2003.

FIGUEIREDO, Isabella Araújo. Ano do Brasil na França e Ano da França no Brasil: diplomacia cultural e relações bilaterais. Orientador: Dr. Antônio Carlos Lessa. Monografia (Pós-graduação) – Curso de Relações Internacionais, Universidade de Brasília. Brasília, 2010. 

FRANCOFONIA BRASIL. Sobre a francofonia. Disponível em: Francofonia Brasil . Acesso em 20 de setembro de 2023.

HAMA, Sabrina Batista. Repatriação Cultural pela França: Condução da Diplomacial Cultural em um cenário pós-colonial. Monografia para graduação em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Sagrado Coração (UNISAGRADO).

JUBILUT, Liliana Lyra. Os Fundamentos do Direito Internacional Contemporâneo: da Coexistência aos Valores Compartilhados. Anuário Brasileiro de Direito Internacional, Belo Horizonte, vol. 2, n. 9, p. 203-219, 2010.

KOZYMKA, Irene. The diplomacy of culture: the role of UNESCO in sustaining cultural diversity. New York: Palgrave Macmillan, 2014.

MENEZES, C. C. F. Representações identitárias e projeção internacional: a diplomacia cultural brasileira (2003-2009). Tese (Doutorado em História, Política e Bens Culturais) – Centro de Pesquisa e Documentação do Brasil, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2015. 

MINISTÈRE DE L’EUROPE ET DES AFFAIRES ÉTRANGÈRES. Diplomatie Culturelle: La politique culturelle extérieure de la France. 2015. Disponível em: https://www.diplomatie.gouv. fr/fr/politique-etrangere-de-la-france/diplomatie-culturelle/. Acesso em 20 de setembro de 2023.

NYE JR, Joseph S. Soft power: The means to success in world politics. Public affairs, 2004.

OUA – Organização de Unidade Africana. Pan-African Cultural Manifesto. First All African Cultural Festival, Algiers, 1969.
SAINT-LAURENT, Tiphaine de. France and the repatriation of cultural objects. Tese (Mestrado em Economia Cultural e Empreendedorismo) – Erasmus School of History, Culture and Communication, Erasmus University Rotterdam. Rotterdam, p.109. 2019.

NOTAS

[1] – “The exchange of ideas, information, values, systems, traditions, beliefs, and other aspects of culture, with the intention of fostering mutual understanding.”

[2] – “The ability to get what you want through attraction rather than coercion or payments. it arises from the attractiveness of a country’s culture, political ideals, and policies.”

IMAGENS:

Imagem de destaque: França Bandeira Nacional – Foto gratuita no Pixabay – Pixabay

Imagem 1: File:Pedro Sánchez asiste a la Cumbre G5 Sahel, en Mauritania 04.jpg – Wikimedia Commons

Imagem 2 :File:Map-Francophone World.svg – Wikimedia Commons

Priscila Tardin

Luso-brasileira, apaixonada pela África. Profissional do Direito que está se especializando em Relações Internacionais para viver o melhor desses dois mundos. Entusiasta de novos desafios e experiências transculturais, com muita facilidade em comunicação e no aprendizado de novos idiomas.

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