UM NOVO RICO NO FUTEBOL: A ARÁBIA SAUDITA E O NEWCASTLE

UM NOVO RICO NO FUTEBOL: A ARÁBIA SAUDITA E O NEWCASTLE

(Foto: Reuters)

Os últimos meses foram repletos de rumores sobre uma possível venda do Newcastle United a um fundo de investimentos saudita. Após várias rodadas de negociação, intermédio de empresários ingleses e autorização da Liga Inglesa, o tradicional clube britânico foi oficialmente vendido por aproximadamente R$2,2 bilhões e agora pertence, mesmo que indiretamente, à Arábia Saudita. 

Novamente, constata-se como um país do Oriente Médio faz valer a aquisição de um time como estratégia de marketing para lançar uma imagem internacional diferente da emitida pelas ações controversas desses Estados. A Coluna RI em Campo já tratou dos assuntos referentes à prática do sportswashing – tentativas de apagar e esconder ações que os governos não querem que sejam expostas internacionalmente – em outras publicações (clique aqui e aqui para acessá-las). O sucesso das empreitadas anteriores, no PSG e no Manchester City, calcaram o caminho para a compra do Newcastle pela Arábia Saudita. Dessa vez, a aquisição da equipe pelo país árabe, mesmo controversa, faz-se importante para analisar como os sauditas se portam internacionalmente e dissecar suas intenções ao comprar o célebre alvinegro inglês.

A ARÁBIA SAUDITA: O INFLUENTE E CONTROVERSO PAÍS 

Um dos maiores produtores de petróleo do mundo, a Arábia Saudita também é, em território, o maior país da Península Arábica, fazendo fronteira com todos os Estados localizados na Península, além da Jordânia e do Iraque ao norte. Os sauditas ainda possuem a costa oeste do país com contato direto com o Mar Vermelho, uma importante rota geopolítica, com acesso direto ao Mar Mediterrâneo através do Canal de Suez e também ao Mar Arábico, configurando uma importante travessia comercial. A influência da Arábia Saudita na região tem origem — além de geográfica — histórica: uma monarquia e berço do islã, os sauditas se veem como sunitas dominantes e líderes do mundo muçulmano.

A Arábia Saudita foi fundada em 1932 pela família Saudi, a qual obviamente deu nome ao país. Desde o estabelecimento do Estado saudita, o país ficou conhecido como um dos mais poderosos em seu equilíbrio de poder regional, especialmente devido à sua posição geográfica, ao alinhamento político com os Estados Unidos da América e também à economia baseada na exportação petrolífera. Apesar das características que garantiram uma posição influente no jogo de xadrez global, os sauditas demonstram algumas questões controversas no que diz respeito à sua organização política e à garantia dos direitos humanos.

Sendo uma monarquia absolutista teocrática, teve a primeira eleição de sua história apenas em 2011, sendo esta de caráter apenas municipal. O príncipe herdeiro do trono saudita é Mohammed Bin Salman, homem forte do país, já que o pai e rei Salman bin Abdulaziz Al Saud sofre de Alzheimer. O príncipe herdeiro coleciona polêmicas, mas a maior questão dos últimos anos foi o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, em 2018, dentro do consulado saudita em Istambul. O profissional que escrevia, entre outras atuações, para o conceituado jornal The Washington Post foi também esquartejado e nunca teve seu corpo encontrado.  A inteligência estadunidense apurou que MBS — como o príncipe é conhecido — foi o mandatário do crime.

Inicialmente, Khashoggi era próximo do governo saudita, mas com o tempo se afastou e se tornou um dos opositores dos monarcas. O jornalista os considerava repressivos e autocráticos, sendo o príncipe herdeiro um dos alvos de suas críticas. MBS, enquanto passa uma imagem de reformador e modernizador ao Ocidente, é considerado internamente um governante que reprime seus dissidentes. A comunidade internacional foi alertada e a Arábia Saudita julgou internamente, sem transparência, os envolvidos — sem chegar ao alto escalão governamental . O caso foi tratado publicamente pelo Estado como esporádico e não planejado, não ocorrendo maiores desdobramentos.

Além do caso de Jamal Khashoggi, o príncipe herdeiro é acusado por organizações não governamentais, como a Anistia Internacional, de permitir e ordenar torturas, execuções, discriminações religiosas, punições desumanas e perseguição política. Mohammed Bin Salman ainda é criticado por seu comportamento impulsivo e militar em conflitos, como na expressiva rivalidade com o Irã. A disputa tem como base as diferenças religiosas, visto que o Irã é xiita e um influente Estado que balanceia o poder com a Arábia Saudita. Os embates influenciam e atingem civis, como a guerra do Iêmen, que causa a morte de milhares de pessoas e é considerada um desastre humanitário pela ONU.

A relutância de uma ação enfática da comunidade internacional contra os atos sauditas está relacionada com a posição geopolítica do país islâmico. A Arábia Saudita é um dos regimes mais repressivos e autoritários do globo, mas conta com pouca oposição do Ocidente, graças a seu papel no Oriente Médio, seja pela perspectiva territorial, estratégica ou energética.

(Mohammed Bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Foto: AFP/SAUDI ROYAL PALACE.)

A COMPRA DO NEWCASTLE E SEUS DESDOBRAMENTOS

O Fundo de Investimento Público (PIF) da Arábia Saudita foi o órgão responsável por comprar oficialmente o Newcastle United. Portanto, quem comanda o PIF é o próprio Estado saudita. Yasir Al-Rumayyan detém o título de “governador” da PIF, porém foi indicado para o cargo por MBS, o príncipe que administra o fundo indiretamente.

A compra do Newcastle já é alvo de críticas da sociedade internacional. Antes mesmo da venda ter sido concretizada, a Premier League recebeu notas e comunicados de organizações pedindo pela prevalência do bom-senso ao não permitir que um governo acusado de atacar os direitos humanos utilize a tradição e prestígio do futebol inglês para cobrir uma imagem internacional negativa. Mesmo travando as negociações por uma questão de pirataria na transmissão do campeonato inglês na Arábia Saudita, a Liga Inglesa permitiu a venda após a resolução do imbróglio, o que gerou a alegria de vários torcedores do Newcastle.

A aquisição do clube inglês foi uma negociação com vários episódios. Ao longo de 18 meses e várias idas e vindas no processo de compra, o negócio foi finalmente sacramentado com a participação da businesswoman Amanda Staveley, inglesa com longo histórico de negócios com países árabes. A empresária teve participação fundamental nas rodadas de negociação entre o antigo dono do Newcastle, os sauditas e a Liga Inglesa. Antes de se envolver na aquisição do Newcastle, Staveley participou da compra do Manchester City pelo Sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan em 2008. A empresária assumirá, junto do marido, cargos importantes na direção do clube e certamente será uma mulher de confiança da Arábia Saudita dentro dos bastidores dos “Magpies” — um dos apelidos do Newcastle.

As comemorações efusivas dos torcedores após a venda nas ruas próximas do St. James’ Park, estádio do clube inglês, demonstram a esperança de uma torcida carente por títulos e ídolos depositada no dinheiro saudita. As origens do dinheiro são controversas, mas diante da possibilidade de gastar até R$1,5 bilhão em reforços na próxima janela de transferência, a torcida do alvinegro — o qual ganhou seu último título inglês na temporada de 1926/27 — não se importa, em sua maioria. A tendência, inclusive, é que um fenômeno parecido com o que aconteceu com o PSG e o City aconteça a longo prazo, trazendo torcedores internacionais e simpatia à figura do príncipe Mohammed Bin Salman e, consequentemente, à Arábia Saudita.

(A ponte entre os ingleses e os sauditas: Amanda Staveley e seu marido, também empresário, se apresentando ao Newcastle.)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, nota-se como mais uma vez um país com histórico complicado em relação a execução plena dos Direitos Humanos utiliza o futebol, esporte massivamente assistido e apaixonante, como um instrumento importante de sua política externa. Os torcedores do Newcastle ficam obviamente felizes com o aporte de dinheiro que facilitará a disputa por títulos nos próximos anos, porém cabe ressaltar como a compra do clube é uma estratégia bem definida: nenhum país do mundo faria o investimento necessário na aquisição de uma instituição no exterior sem esperar nenhum benefício em troca. Nesse caso e em outros, usa-se o esporte como uma tentativa de cobrir a imagem de um governo que é acusado por ONG ‘s de matar, torturar e perseguir pessoas, além de discriminar suas mulheres e população LGBT+.

A Arábia Saudita é um país forte, influente e dominante no Oriente Médio. O Newcastle provavelmente será uma potência forte, influente e dominante no futebol mundial. Mas esses fatores não podem deixar que as ações passadas e futuras do país e de seu príncipe herdeiro sejam esquecidas. Pelo contrário, que sejam lembradas, discutidas e revogadas, a fim de que o país seja tratado internacionalmente sem ressalvas quanto à garantia dos Direitos Humanos.

(Torcedores agitam a bandeira da Arábia Saudita nos arredores do St. James’ Park, comemorando a venda do clube. Foto: Reuters/Lee Smith.)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CORBIN, Jane. As chocantes gravações que retratam os últimos momentos de Jamal Khashoggi, morto em consulado saudita na Turquia. BBC Panorama, Istambul, 5 out. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49932213. Acesso em: 13 out. 2021.

ESPINOSA, Ángeles. Irã e Arábia Saudita iniciam degelo com seus primeiros contatos em cinco anos. El País, Dubai, 20 abr. 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-04-20/ira-e-arabia-saudita-iniciam-degelo-com-seus-primeiros-contatos-em-cinco-anos.html. Acesso em: 13 out. 2021.

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UOL. Novo dono do Newcastle tem casa de R$ 1,7 bi e foi acusado de assassinato. UOL, São Paulo, 8 out. 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2021/10/08/dono-newcastle-principe-arabia-saudita.htm. Acesso em: 12 out. 2021.

Mateus Rodrigues Ramos

Natural de Catalão (GO) e graduando em Relações Internacionais pela UFG. Sou interessado por Conflitos Internacionais, temas históricos, diversidade cultural e estudo de idiomas. Apaixonado por futebol, games e cultura pop em geral, estou sempre disposto a questionar e aprender.

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