O FOSSO E A GUERRA DA COREIA (JAVALIS NO QUINTAL)

O FOSSO E A GUERRA DA COREIA (JAVALIS NO QUINTAL)

Era uma guerra pobre, lamacenta, chuvosa e imunda.

“O Fosso”, em “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia.

“O Fosso” é um conto presente no livro “Javalis no Quintal”, da autora brasileira Ana Paula Maia. Com uma escrita crua e direta, que remete ao realismo e ao naturalismo da literatura nacional, o conto disserta sobre a conversa de dois soldados americanos — Jeremiah e Edgar — durante a Guerra do Vietnã. Eles estão em um local chamado “Fosso”, uma pequena lagoa de pântano, onde recebem uma punição por desobedecerem às ordens de seus superiores.

O debate entre os dois traz à luz questões de imprensa, liberdade, nacionalismo e guerra. A Guerra do Vietnã, que durou de 1959 a 1975, foi um dos conflitos mais marcantes da Guerra Fria, representando um momento de tensão entre a URSS e os EUA, que estavam em uma disputa (in)direta de poder sobre a região. Ao todo, cerca de 58 mil soldados americanos morreram durante o confronto e pelo menos 1,1 milhão de vietnamitas faleceram. É sob tal cenário que as discussões do conto se originam, marcando o sentimento de inconformidade, revolta e medo dos personagens.

A chuva tem ajudado a lavar o sangue dos mortos, a misturá-lo inteiramente ao solo. É possível enxergar certo horror em algumas árvores, cujos galhos espiralados ou retorcidos denotam expressões humanas em angústias. Toda a espécie de sangue. Há todo o tipo de dor refletida nas árvores.

“O Fosso”, em “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia.

LIBERDADE E SUAS FACES

Durante a conversa, os dois soldados conversam sobre as motivações individuais das pessoas que se alistaram para lutar ali. Jeremiah afirma desejar se afastar da fazenda na qual  trabalhava e da vida rotineira dos seus antepassados. Assim, para fugir deste cenário que lhe parecia um pesadelo, entrou no exército sem saber os desafios que iria enfrentar.

Estava disposto a ser diferente. Aceitou servir ao seu país mesmo sem compreender o que dizia a cartilha que convocava os homens da América para lutarem. Ele tinha forças e pretendia sobreviver à guerra e a toda sua miserável ascendência.

“O Fosso”, em “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia.

Entretanto, perceberam que apenas os americanos possuíam o privilégio da escolha: os vietnamitas não podiam  escolher lutar ou não. Na verdade, eles foram obrigados a defender suas casas e renunciar a sua segurança em nome da promessa de liberdade. O seu país natal havia sido invadido e a única forma de lidar com isso era resistir.

Os soldados não foram à guerra para morrer, mas para serem heróis. Os vietnamitas estavam dispostos a morrer para ter uma nação livre […]. Não existe trégua para quem luta por liberdade.

“O Fosso”, em “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia.

PATRIOTISMO E ESTADO

Outro tema presente na discussão é como o patriotismo cria uma imagem sobre a guerra para os cidadãos de um país, imagem essa que não é verossímil e está bem distante da realidade. Em virtude disso, os soldados americanos foram à luta aguardando honrarias, na esperança de se tornarem heróis, mas se encontraram num panorama de terror e morte, longe do cenário antes idealizado que lhes foi apresentado.

Ir para a guerra foi uma escolha sua, pelo menos era o que Jeremiah e mais um punhado de outros jovens soldados imaginavam. Porém, o senso de patriotismo pode destruir um país. E o que motiva uma guerra quase nunca é realmente percebido por aqueles que morrem lutando. Uma guerra sempre parece ser a guerra do outro, ainda que convocados como pátria, esses homens só se deram conta quando chegaram ao coração da selva, às margens das trevas e no limite estreito com o inferno.

“O Fosso”, em “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia.

Em adição a isso, há um tópico exposto no texto sobre o Estado e seu papel na segurança do cidadão, assim como na  sua “posse” sobre o cidadão. O capitão dos soldados surge na narrativa após a desobediência de Edgar e Jeremiah, revelando a ambos que esse ato de rebeldia não deveria ser justificado porque os soldados seriam posse do Estado. Isto remete a um “contrato social” entre governo e população.

— Nenhum daqueles homens pertence às suas famílias. Quando uma criança nasce ela é do Estado. Os pais devem cuidar, mas o Estado deve zelar e vigiar. Já parou alguma vez na sua vida pra pensar nisso, soldado? Os homens nascem e morrem e não se dão conta disso. Entenda bem, Soldado Elmore, quando o seu país manda matar, você deve obedecer.

“O Fosso”, em “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia.

IMPRENSA

A Guerra do Vietnã é muito conhecida pela influência da mídia sobre o fim do conflito — a imprensa e o fotojornalismo foram essenciais para que a população americana se revoltasse com o que estava acontecendo no país asiático e protestasse pelo seu fim, especialmente durante a década de 1970. E este tópico é tratado rapidamente em “O Fosso”, com a revolta do capitão concernente ao tema.

— Parece que todo cidadão americano resolveu protestar contra a nossa permanência nessa guerra, mas eles não sabem de merda nenhuma do que acontece aqui. Tudo o que sabem é o que assistem na hora do jantar pela televisão. A imprensa está nos transformando numa piada e essa guerra num circo.

“O Fosso”, em “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia.

RAÇA

Por fim, as temáticas  raça e preconceito também são  comentadas no conto. Jeremiah é um soldado negro que é sempre enviado na frente de seus colegas quando há deslocamento de soldados. É o seu trabalho observar armadilhas e minas no caminho — e isso implica dizer que, se alguém for o primeiro a morrer, a probabilidade certeira é de que seja ele. Dessa forma, fica explícito como as decisões tomadas valorizavam  a vida de militares brancos em detrimento de soldados pretos.

— A Klan matou muitos da minha família desde o meu tataravô. Nos caçavam feito bichos. Agora nos colocam aqui pra seguir bem à frente dos soldados pra morrer primeiro. Estamos sendo caçados e mortos como a maioria desses amarelos vietnamitas. Igualzinho a eles. A gente lutando e morrendo aqui e eles lá mataram o Luther King no mês passado. Eles calaram o homem, mas não antes que ele dissesse que tinha um sonho. Eu também tenho um sonho, Edgar. E ele é tudo o que eu tenho aqui. Se eu morrer nesta guerra, eu morro com o meu sonho.

“O Fosso”, em “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia.

CONCLUSÃO

O conto de Ana Paula Maia é rápido e duro, característico de sua escrita. De forma veloz e perspicaz, a autora traz à luz temas delicados sobre a guerra que demonstram a posição do soldado e do vietnamita de maneira dolorosa — assim como era. Percebe-se que não é um jogo de heróis e vilões, mas de poderosos e seus servos contra algo mais fraco, porém resistente. Inclusive, por ser um texto curto, a profundidade dos personagens envolvidos e das críticas é excepcional, com Ana Paula cumprindo algo muito difícil entre escritores: passar uma mensagem que não soa supérflua em um limite relativamente pequeno de páginas, especialmente sobre tópicos densos e bastante presentes nos estudos de Relações Internacionais, como os supracitados — liberdade, patriotismo, imprensa e raça. De fato, uma obra exemplar.

Talita Soares

Graduada em RI pela UFG, leitora nas horas vagas, concurseira na maior parte do tempo.

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