AS BOAS MULHERES DA CHINA SÃO COMO ÁGUA

AS BOAS MULHERES DA CHINA SÃO COMO ÁGUA

“Quanto vale exatamente a vida de uma mulher China?” Esta é uma pergunta que está nas primeiras páginas do livro As Boas Mulheres da China, de Xue Xinran. A obra retrata depoimentos que a jornalista recebeu de mulheres durante seu programa de rádio, Palavras na brisa noturna, entre as décadas de 1980 e 1990. Além dos relatos, a autora coloca seus pensamentos e considerações nas páginas sobre o que é ser mulher na China e quais são os sofrimentos que elas passam.

“Xinran, você devia escrever isso. Escrever cria uma espécie de repositório e pode ajudar a abrir um espaço para conciliar pensamentos e sentimentos novos. Se você não as escrever, essas histórias vão encher seu coração e parti-lo”.

Palavras de Velho Chen, um grande amigo de Xiran, para a jornalista.

Relatos em As Boas Mulheres da China

Com dezenas de relatos diferentes de mulheres chinesas, o livro é algo tocante e doloroso. Umas das primeiras histórias a serem contadas é a de uma garota chamada Hongxue, que passou por uma infância e adolescência de abusos e sofrimentos e conheceu um toque gentil apenas aos 17 anos, quando estava internada no hospital e uma mosca pousou em sua perna. A maior parte dos depoimentos que Xinran lia eram divulgados em seu programa, mas alguns, como este, ela não conseguia professar. A profundidade e delicadeza dessas histórias pareciam ser complexas demais para serem ditas.

Frequentemente examino meu rosto com atenção no espelho. Parece liso da juventude, mas eu sei que tem cicatrizes da experiência: é despido de vaidade e muitas vezes mostra dois vincos fundos na testa, sinais do terror que sinto dia e noite. Meus olhos não têm nada do brilho ou da beleza dos olhos de uma garota. No fundo deles, há um coração que se debate. Dos meus lábios machucados foi raspada toda a esperança de sensação; minhas orelhas, fracas por causa da constante vigilância, nem aguentam um par de óculos; meu cabelo, que deveria brilhar de saúde, não tem vida por causa da preocupação.

É este o rosto de uma garota de dezessete anos?

21 de agosto, ensolarado [diário de Hongxue]. As Boas Mulheres da China.

Opiniões na universidade sobre A Boas Mulheres da China

É sempre entre os estudantes que as revoluções começam; aquelas jovens estavam criando a onda da mudança na consciência chinesa moderna.

As Boas Mulheres da China.

Após alguns meses com seu programa, a Xinran foi dar aulas em uma universidade e ouviu alguns comentários das alunas um tanto críticos. Surpresa, a jornalista foi até uma das estudantes conversar e entender o que a geração mais nova pensava das relações entre homens e mulheres e do que ser uma mulher na China significava. Jin Shuai foi a entrevistada. Era uma jovem com opiniões fortes — e até mesmo amargas — sobre o amor, família, casamento… Mas mostrou um outro lado da China para Xinran.

Jamais pense num homem como uma árvore em cuja sombra você pode descansar. A mulher é apenas fertilizante, apodrecendo para tornar a árvore forte.

“Jin Shuai”, em As Boas Mulheres da China.

As mulheres são como água, os homens, como montanhas

Jingyi passou 45 anos procurando o homem que amava. Quando o encontrou, descobriu que ele tinha esposa e filhas. Essa é outra história trazida ao livro. O estado de choque a fez sumir e se isolar, deixando seus colegas preocupados. Xinran a encontrou num quarto de hotel, em frente a um lago e uma paisagem linda. Quando Jingyi teve a coragem de contar sua história, trouxe um ditado popular que estaria presente durante o resto do livro.

Para Jingyi, as mulheres são como a água, e os homens, como as montanhas. A comparação era válida? […] O Grande Li escreveu: “O chineses precisam das mulheres para formarem uma imagem de si mesmos — como as montanhas ao se refletirem nos riachos. Mas os riachos correm das montanhas. Onde está a imagem verdadeira, então?”.

As Boas Mulheres da China.

Essa história nos leva a outra. Uma empresária de sucesso chamada Zhou Ting, antes da fama, era apaixonada por um homem chamado Wei Hai. Após pedi-la em casamento, ele a abandonou. Zhou Ting passou anos se reconstruindo ao mesmo tempo que que colocava suas frustrações sobre seus negócios. Ela cresceu e tornou-se um exemplo de liderança feminina. Anos mais tarde, encontrou Wei Hai e reatou o relacionamento, mesmo sabendo que ele fugiria de novo. Após Xinran confrontá-la sobre tal decisão, Zhou respondeu.

“Emocionalmente, os homens nunca podem ser como as mulheres. Jamais serão capazes de nos compreender. Eles são como as montanhas: só conhecem o chão sobre seus pés e as árvores nas suas encostas. Mas as mulheres são como água […]. Penso que é porque a água é a fonte da vida e se adapta ao ambiente. Assim como as mulheres, a água dá de si mesma em todo lugar aonde vai para nutrir a vida”.

“Zhou Ting” em As Boas Mulheres da China.

A religião em As Boas Mulheres da China

Um tema abordado por Xinran em seu livro é a fé das mulheres chinesas. Capazes de acreditarem em diversos tipos de religiões, elas são as mais devotas seguidoras dos pensamentos divinos. Ao se questionar sobre o tema, percebeu que muitas o faziam para terem foco, objetivos ou verem um sentido em suas vidas. Estavam torcendo para que suas situações mudassem. Mas não apenas isso:

“As chinesas têm fé religiosa”, disse, “mas parecem capazes de crer em várias religiões ao mesmo tempo. As que acreditam nos exercícios espirituais e físicos do qigong estão sempre mudando o tipo de qigong que praticam e o mestre a quem seguem. Também os deuses delas vão e vêm. Não se pode censurá-las por isso: são as dificuldades da vida que as fazem ansiar por uma escapatória. Como disse o presidente Mao: ‘a pobreza gera o desejo de mudança'”.

Palavras de Velho Chen, um grande amigo de Xiran. As Boas Mulheres da China.

O perigo do jornalismo

Por todo o livro, a autora descreve as situações de perigo e censura que enfrentou por ser jornalista. Na rádio em que trabalhava, havia um minuto de atraso para ligações quando recebia uma chamada de uma ouvinte. Assim, seus colegas de trabalho poderiam saber se uma mensagem teria conteúdo proibido ou não. Entretanto, numa noite fatídica, a pessoa responsável por essa vistoria estava distraída e deixou passar uma chamada com uma pergunta sobre homossexualidade.

Na China, principalmente na década de 1990, a questão da homossexualidade é e era um tabu enorme. Isso além de ser veementemente combatida pelo governo, uma vez que fora considerada crime durante a Revolução Cultural, a qual se findou poucos anos antes da estreia do Palavras na brisa noturna. Xinran percebeu que sua carreira, ou pelo menos o futuro dela, estava por um fio. Após desligar por um minuto o áudio do seu programa, quando voltou ao vivo deu uma resposta que era adequada aos padrões do Partido e acalentava o coração de quem passou por perseguição por causa de sua sexualidade.

Quando você entra pelos portões desta estação de rádio, a sua coragem é confiscada. Você se torna ou uma pessoa importante ou uma covarde. Não importa o que os outros digam ou o que você mesma pense. Nada disso tem importância. Você só pode ser uma dessas duas coisas. É melhor encarar o fato.

Palavras de Velho Chen, um grande amigo de Xiran. As Boas Mulheres da China.

Como a feminilidade na economia age

Voltando a falar sobre Zhou Ting, a empresária que aceitou de volta o homem que a abandonou, ela mostra como teve de deixar para trás características atribuídas à feminilidade quando começou a crescer nos negócios. O mercado competitivo chinês é brutal para qualquer coisa que ele delimita ser “fraqueza”. Foi construído por homens e espera que quem o componha tenha em seu comportamento os traços característicos do privilégio masculino.

Para ela, o segredo do sucesso é o seguinte:

“Primeiro, ponha de lado as emoções delicadas femininas e deixe que a mídia se espante com a diferença entre você a as outras mulheres. Segundo, deixe que seu coração se parta e crie uma boa história com isso. Depois, use suas cicatrizes como oportunidade para negócios: exiba-as ao público; conte-lhe sobre a sua dor. Enquanto as pessoas estiverem soltando exclamações sobre o quanto você deve ter sofrido, exponha os seus produtos no balcão e embolse o dinheiro delas.”

“Zhou Ting” em As Boas Mulheres da China.

Conclusão

As Boas Mulheres da China demonstra que o esquecimento e a injustiça está presente na vida de muitas garotas, adolescentes e mulheres ao redor do mundo. Por ser um livro de relatos, cada história deixa uma marca no coração do leitor e o faz refletir. Ademais, a narrativa de Xinran é tocante e bem desenvolvida. Ao fim do livro, percebemos que uma segunda leitura é necessária: não estamos preparados para nos despedir de tantas histórias sem o esperado “final feliz” e de tantas ponderações sábias sobre o local feminino na sociedade chinesa.

Talita Soares

Formada em RI pela UFG, leitora nas horas vagas.

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