CHINA E O FEMINISMO DE ESTADO: UMA TENTATIVA DE MONOPÓLIO

CHINA E O FEMINISMO DE ESTADO: UMA TENTATIVA DE MONOPÓLIO

Ativistas em protesto contra violência doméstica que ficou conhecido como “Noivas Sangrentas”, em 2012, ocorrido em Pequim (Fonte: South China Morning Post).

Estudar teorias feministas sempre irá nos fazer deparar com múltiplas vertentes, cada qual com suas particularidades históricas, referenciais teóricos e lentes utilizadas para entender as relações de gênero. Dessa forma, ser mulher em determinado contexto depende, entre outras coisas, da sua posição econômica, racial e étnica. Além disso, é necessário levar em consideração o contexto político vigente, juntamente com as suas raízes culturais específicas (GONÇALVES, 2022). Bem, na China não seria diferente. Contudo, a relação em desenvolvimento entre o feminismo e o Estado chinês ecoa de forma complexa, controversa e, sobretudo, como uma evidente tentativa de monopolizar um discurso e uma luta, o que, consequentemente, enfraquece ou afeta negativamente o seu potencial.

O que é Feminismo de Estado?

Pensar em teorias feministas chinesas não é um processo simples: não é possível partir de pressupostos ocidentais, dado que estamos falando de uma nação com cultura milenar e filosofias muito próprias de pensar a existência humana. Além disso, não é possível determinar teorias sem abarcar seus contextos linguísticos e culturais, ou, similarmente, transferir sua lógica para outros contextos sem sofrer distorções ou mesmo prejuízos (XIAOJIANG apud SPAKOWSKI, 2011, p. 35). Logo, feita essa primeira ressalva, também é essencial ter em mente que não há um feminismo único para toda a China. Dessa forma, podemos citar teorias, como aquelas oriundas de Taiwan, Hong Kong e Macau, possuindo diferentes influências e graus de abertura para o ocidente (CHEN, 2011). 

Aqui iremos dedicar nossa atenção ao feminismo intrinsecamente vinculado ao Estado Chinês e o Partido Comunista Chinês (PCC): o Feminismo de Estado. Apesar do conceito de “feminismo de Estado” ter surgido na Escandinávia, a fim de retratar feministas burocratas e/ou mulheres políticas que promoviam políticas de igualdade de gênero, no contexto chinês ele reflete uma imagem diferente. Isto é, o paradoxo de um Estado patriarcal que busca monopolizar o discurso pela libertação das mulheres por meio de várias inconsistências (ZHENG, 2005). 

Movimento de Quatro de Maio: berço do feminismo?

O movimento feminista na China antecede a Revolução Chinesa de 1949, uma vez que teorias feministas ocidentais já começavam a ecoar no território desde o fim da Dinastia Qing (1644-1912), a partir de um movimento modernizador sustentado pelo envio de estudantes chineses para obter novos conhecimentos no exterior. Assim, além de importarem essas teorias, esses estudantes engajavam-se ativamente em suas próprias reformulações, levando em consideração os pilares socioculturais e filosofias pré-existentes como base (GONÇALVES, 2022).

Desse modo, um dos primeiros movimentos em que – alguns teóricos acreditam – a bandeira feminista foi levantada foi o May Fourth, manifestação anti-imperialista, cultural e política ocorrida em 4 de maio de 1919, considerada como o despertar do povo chinês. Portanto, durante essa ocasião, intelectuais chineses começaram a levantar a possibilidade de que a emancipação das mulheres seria um dos fatores essenciais para a modernização da China como um todo (MORENO, 2023). Porém, essa ideia pode ser debatida.

Nesse sentido, tal ambiguidade ocorre, principalmente, pelo fato de que a composição desse movimento foi, majoritariamente, de uma elite masculina, com a participação de somente algumas poucas mulheres intelectuais. Ademais, naquele momento a emancipação feminina parecia funcionar mais como uma ferramenta de discurso, um slogan de convencimento, do que um movimento com objetivos práticos a serem coordenados (CHEN, 2011).

A Revolução Chinesa e as mulheres

Hershatter e Zheng (2008) levantam o ponto de que frequentemente é questionado, de maneira simplista, se a Revolução Chinesa foi boa ou ruim para as mulheres, enquanto a resposta não poderia, de forma alguma, ser simples. No contexto da Revolução, a cada constatação progressista surgia uma nova inconsistência.

Imagem decorativa: Poster de propaganda que ilustram os recursos visuais utilizados na relação entre a China e o Feminismo de Estado, produzido em 1978.
Posters de propaganda, alinhado ao Feminismo de Estado chinês, entitulado “Women’s militia from Dongting Lake”, produzido por Zheng Xiaojuan (郑小娟) em 1978 (Fonte: chineseposters.net, Landsberger collection).

Para exemplificar, nesse contexto foi forjada a ideia de uma mulher comunista chinesa sem gênero, que seria a imagem de uma “garota de ferro”. A partir dessa ideia, surgiram as políticas de desgenerização, baseadas em não ter diferenciação entre os sexos (CHEN, 2011). Contudo, dada a configuração da sociedade chinesa, o resultado alcançado acentuou a hierarquia de gênero.

Após a morte de Mao Tsé-Tung, a situação se agravou. Com a Política do Filho-Único, que objetivava um controle de natalidade, surgiram graves problemas de infanticídio feminino, dada a preferência por filhos do sexo masculino, que herdariam o legado familiar. Paralelamente, cresceu a viabilidade da realização de abortos e, enquanto no Ocidente o aborto é entendido como uma pauta emancipatória, na China significou a discriminação sexual contra meninas, que desde o útero da mãe já eram compreendidas enquanto uma desvantagem social (CHEN, 2011).

Por outro lado, a partir da década de 80 a China observou uma significativa abertura para o Ocidente, época também considerada como o apogeu feminista. Por exemplo, foi nesse período que o O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, foi traduzido para o chinês. Além disso, ocorreu, em 1995, a IV Conferência Mundial da ONU sobre Mulheres em Pequim (GONÇALVES, 2022), encontro essencial para promover o engajamento sobre questões de gênero. No entanto, essa liberalização ainda serviu como uma cortina de fumaça do Estado Chinês para monopolizar a pauta. Um claro exemplo dessa dinâmica foi a maturação da All-China Women’s Federation (ACWF).

ACWF ao longo dos anos

A ACWF foi fundada em abril de 1949, a fim de ser a ponte entre o Partido Comunista Chinês e as mulheres, para proteger os seus direitos e interesses, bem como promover igualdade de gênero. Assim, a instituição se consolidou como o primeiro e mais forte sistema para organizar mulheres na República Popular da China (ALL-CHINA WOMEN’S FEDERATION, 2023). Em um esforço para alcançar certa legitimidade (e financiamento) no cenário internacional, em 1995 a ACWF passou a referir a si própria como uma Organização Não-Governamental (ONG) (ALL-CHINA WOMEN’S FEDERATION, 2023), posição que foi altamente contestada, dado que na prática ela continua possuindo uma relação íntima com o Estado.

Consequentemente, a luta pela emancipação das mulheres sempre esteve ligada de maneira intrínseca com o próprio nacionalismo chinês (HERSHATTER; ZHENG, 2008). Assim, cada segmento da ACWF está sob supervisão direta do PPC, possuindo uma estrutura rígida – o que limita severamente a participação popular feminina. Além disso, a instituição ainda possui um papel dual: primeiro, cabe a ela transmitir as decisões do governo e implementar as políticas públicas e, somente em segundo plano, ter esse caráter representativo.

Assim sendo, a ACWF tem um papel fundamental na manutenção da ideia de um Feminismo de Estado. Como aponta Jude Howell:

“em um feminisno derivado do Estado, agências se tornam monopólio do Estado. Mudanças nas relações de gênero são inspiradas de cima e mobilizadas por meio dos canais organizacionais da ACWF. O Estado, por meio da ACWF, define as causas, métodos e visão, atuando como o homem guardião e protetor dos direitos e interesses das mulheres. Mesmo que mulheres possam ser mobilizadas para mudanças, elas não podem ser suas próprias agentes de mudança” (apud ZHENG, 2005, p. 521).

Considerações finais

Em conclusão, de maneira geral, é extremamente interessante questionar e compreender por que, em termos gerais, as diversas vertentes do feminismo chinês continuam relegadas à periferia global. Além disso, é importante destacar que, por outro lado, a China não só solidifica sua posição de ator central no sistema internacional, mas também busca ativamente expandir sua influência.

Assim, de certa forma, o termo Feminismo de Estado ilustra o pouco espaço que os movimentos feministas fora do arcabouço governamental possuem (ANGELOFF; LIEBER, 2012). Principalmente quando esse ativismo passa a ser entendido como uma ameaça ao Feminismo de Estado e sua hegemonia, sendo declarado, automaticamente, inimigo do Estado, levando à censura e perseguição, em casos mais severos. Em suma, é possível observar um impedimento ao diálogo amplo, ao reconhecimento e ao próprio rompimento de barreiras patriarcais (GONÇALVES, 2022).

Por conseguinte, nessa tentativa de monopolizar, por diversas vezes esse Feminismo de Estado é assimilado como a única vertente de produção de conhecimento sobre gênero na China, o que ainda é uma ferramenta para que teóricas ocidentais evoquem uma posição de superioridade e uma perpetuação da ideia de orientalismo (SAID, 2007). O resultado? Enquanto as mulheres chinesas tentam fazer suas vozes serem ouvidas para além do mainstream fabricado pelo Estado Chinês, infelizmente, no que tange à igualdade de gênero, a Constituição permanece com os mesmos termos desde 1950 (ANGELOFF; LIEBER, 2012).

Recomendações

Para finalizar, convido vocês ainda a dar uma olhadinha no atual site da ACWF, para entender de que forma o Estado Chinês (não) vem trabalhando pelas pautas feministas:

Caso tenha interesse em ler um pouco mais sobre outras vertentes de feminismos produzidos na China, recomendo dar uma olhadinha no livro abaixo:

Caso tenha interesse em continuar lendo sobre direitos das mulheres no contexto asiático, recomendo dar uma olhada no texto abaixo:

Referências

ALL-CHINA WOMEN’S FEDERATION. About the ACWF. 2023. Disponível em: https://www.womenofchina.cn/womenofchina/html1/about/1503/2333-1.htm. Acesso em: 16 maio 2023.

ANGELOFF, Tania; LIEBER, Marylène. Equality, Did You Say?. Chinese feminism after 30 years of reforms. China Perspectives, v. 2012, n. 2012/4, p. 17‑24, 2012.

CHEN, Ya-chen. The many dimensions of Chinese feminism. New York: Palgrave Macmillan, 2011.

DIKOTTER, Frank. Women and Sexuality in China: Dominant Discourses of Female Sexuality and Gender Since 1949. The China Quarterly, v. 151, p. 679-680, 1997.

GONÇALVES, Tuane Oliveira. Feminismos e vivências: uma análise das relações de gênero na China. Zi Yue, v. 2, n. 01, p. 119-126, 2022.

HERSHATTER, Gail; ZHENG, Wang. Chinese history: A useful category of gender analysis. The American Historical Review, v. 113, n. 5, p. 1404-1421, 2008.

MORENO, Tica. O Movimento 4 de Maio e a emancipação das mulheres na China. Capire. Disponível em: https://capiremov.org/experiencias/o-movimento-4-de-maio-e-a-emancipacao-das-mulheres-na-china/. Acesso em: 26 maio 2023.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Editora Companhia das Letras, 2007.

SPAKOWSKI, Nicola. “Gender” trouble: Feminism in China under the impact of western theory and the spatialization of identity. positions: east asia cultures critique, v. 19, n. 1, p. 31-54, 2011.ZHENG, Wang. “State feminism”? Gender and socialist state formation in Maoist China. Feminist studies, v. 31, n. 3, p. 519-551, 2005.

ZHENG, Wang. “State feminism”? Gender and socialist state formation in Maoist China. Feminist studies, v. 31, n. 3, p. 519-551, 2005.

Ana Laura Baia de Morais

Mineira, graduanda em Relações Internacionais pela UFG e mãe de gato. Estudo sobre feminismo, tráfico humano e decolonialidade. Artista nas horas vagas, amante de criar playlists novas e um bom rolê de queijos e vinhos.

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