LEMBRAI-VOS: D. PEDRO I, O REI-SOLDADO

LEMBRAI-VOS: D. PEDRO I, O REI-SOLDADO

Olá, seja bem vindo a mais um capítulo de Fabula Orbi, onde contamos a história da história. Novo por aqui? Confira nossos textos anteriores!

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O homem e o mito

Todos que leem a biografia de D. Pedro I se deparam com um homem que mais parece ter sido criado, saído de algum conto. Se não fosse pelo extenso estudo acerca de sua vida, muitos fatos seriam difíceis de crer.

O sabor de fantasia que sua história provoca deve-se sobretudo pela personalidade complexa do monarca, que, apesar das rígidas estruturas sociais de sua posição, continuou sendo “terrivelmente humano”, ainda hoje um prato cheio tanto para seus opositores, quanto para seus fãs.

Analisando as principais narrativas sobre a vida e a obra de D. Pedro é possível diferenciar três imagens distintas: a teatral, a infame e a heroica. Mas antes de irmos a elas, vamos dar uma olhada em como anda a reputação do antigo rei entre nosso público.

1 – Qual sua avaliação geral sobre o 1º imperador do Brasil, D. Pedro I?

POSITIVANEGATIVA
24%76%
votos: 192

2 – Aspectos de sua personalidade

PERSONALISTAESTADISTA
69%31%
votos: 175
PROMÍSCUOPURITANO
84%16%
votos: 175
AUTORITÁRIOLIBERAL
79%21%
votos: 173
IGNORANTEINTELIGENTE
54%46%
votos: 164

3 – A participação de D. Pedro no processo de independência foi

IMPORTANTEDISPENSÁVELFUNDAMENTAL
48%39%13%
votos: 151

*Pesquisa realizada via Instagram entre seguidores do colunista e do Dois Níveis.

Percebe-se o claro predomínio de uma visão crítica da trajetória do imperador, além de um grau significativo de questionamento em relação ao seu papel na independência do Brasil, apesar desta ser creditada “oficialmente” em sua conta. O que pode motivar essa percepção são fatores como: os insucessos do seu reinado; as decisões questionáveis durante o processo de independência; os atuais valores democráticos; a herança histórica de propaganda anti-imperial, entre outros.

Por outro lado, a visão favorável pode ser inspirada por fatores como: sucessos do reinado, mérito pela independência pacífica, mérito pela conservação do território, valores conservadores (não estou opondo isso a “valores democráticos”, deixando claro para vocês),  patriotismo, entre outros.

Então, qual Dom Pedro que você, leitor, conhece? Qual você não conhece? Vejamos a seguir.

O que vale é o entretenimento

Fofocas sobre celebridades estão longe de ser um hábito contemporâneo. A vida pessoal da nobreza era tema recorrente no assunto cotidiano durante os tempos de império e a corte lusitana, particularmente, não desapontava sua audiência. Os ibéricos já tinham uma certa fama de “grosseiros” pelo resto da Europa, e quando a família real transmigrou-se para cá, encontrou um clima tropical e uma diversidade de culturas despidas de moralismo religioso, como as africanas e as nativas indígenas. O resultado vocês podem imaginar.

“Em parte alguma do mundo existem mais padres e vê-se menos religião do que no Brasil.”

– Relato de um estrangeiro (DEL PRIORE, 2012)

Dom João VI teve relações homoafetivas;¹ Dona Carlota Joaquina mandou matar a esposa do seu amante, então presidente do Banco do Brasil.² Ambos se detestavam e passaram a dormir em quartos separados quando D. João descobriu um plano de Carlota para interná-lo num manicômio (uma tentativa peculiar de golpe de Estado). Tantos problemas parecem tê-los distraído de suas obrigações para com seu filho, Pedro, que cresceu pouco disciplinado e com uma educação bem aquém do que se espera de um príncipe.

A primeira versão da imagem teatral que se constrói de D. Pedro é uma imagem satírica que busca fazer uma caricatura ao ressaltar seus vícios. Aqui o objetivo é fazer troça de grandes momentos da história nacional, normalmente trazendo uma crítica velada a determinado conjunto de valores.

D. Pedro aparece como um homem ignorante ou mesmo burro (devido à pouca educação formal); grosseiro (devido ao temperamento curto) e promíscuo (devido ao seu destempero sexual). Essa narrativa atinge sua glória máxima ao rememorar o dia da proclamação da independência, onde faz questão de exaltar todos os aspectos pobres e mundanos da ocasião, como a crise de disenteria que acometia nosso nobre libertador.

D. Pedro na minissérie Quinto dos Infernos: “Titília, chegou o demonão”. Sim, os apelidos foram reais. (Frame/Globo)

A segunda versão da imagem teatral assume um tom dramático ao inclinar-se sobre a problemática vida conjugal de D. Pedro e Leopoldina. O casal viveu altos e baixos (muito mais baixos) e encontrou seu fim de modo um tanto trágico.

Os dois eram completamente opostos. Pedro tinha gosto pelas artes e pelos prazeres terrenos. O príncipe aprendeu a tocar, a dançar e a cantar, além de tornar-se compositor. Não se limitava ao que era tocado nos teatros, mas também se misturava em tavernas e até terreiros! Leopoldina tinha gosto pelo saber acadêmico, principalmente ciências naturais, recebera educação do mais alto nível na Europa. Vivia entretida pelos livros.

Pedro, desde jovem tinha a sexualidade aflorada e não se contentava com poucas mulheres. Pais e maridos preocupados tratavam de esconder suas filhas e esposas, já que era imprudente negar a vontade Real; outros nem tão preocupados faziam o inverso e as ofereciam de bom grado na intenção de ganhar favores junto ao príncipe. Leopoldina era religiosa fervorosa e adepta da castidade. Sexo era somente para procriar, de modo que o prazer deveria ser anulado do ato.

Pedro não compartilhava o gosto intelectual dela; Leopoldina não compartilhava o gosto carnal dele. Mas os dois tinham que manter um compromisso que era muito maior do que suas vontades. Os casamentos dinásticos eram antes de tudo um arranjo diplomático e esse não foi exceção, naquele contexto de crise do absolutismo, unir a tradicionalíssima Casa Habsburgo com a Casa Bragança – ainda em posse de suas colônias — era uma boa estratégia. Saiu pior para ela.

Em 1822 D. Pedro conhece Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, e tem início uma paixão arrebatadora, que geraria repercussões até na Europa. Não só Domitila passa a fazer parte da Corte — e, portanto, adentrar o convívio do casal Real —, como todos seus familiares passam a ocupar altos cargos do funcionalismo público. Não o suficiente, ainda teria quatro filhos.

Anos de isolamento e abuso fizeram com que Leopoldina entrasse em depressão, vindo a falecer em 1826, aos 29 anos, durante uma gestação. Pedro, que estava em campanha militar, quando partiu, fora previamente avisado pela própria imperatriz de que ela não estaria mais lá quando ele voltasse. E o aviso foi cumprido, deixando nele uma crise de consciência aguda. Seu relacionamento com Domitila sofre, então, um grande estremecimento, ruindo de vez quando ele precisou voltar a se casar.

Sua segunda esposa, Amélia, conheceu um marido fiel e devotado.

Leopoldina exercia papel ativo na política brasileira dentro conselho de Estado. (Pintura de Georgina Albuquerque/Domínio Público)

Coisa Nossa, Máfia Real

A imagem negativa de D. Pedro é construída basicamente sob 3 focos: autoritarismo, personalismo e inabilidade política.

A veia autoritária do imperador fica evidente na promulgação da Constituição de 1824, que na verdade foi outorgada pelo próprio, após este dissolver a constituinte. Apesar da nova constituição prever a separação dos 3 poderes, um quarto foi criado: o poder moderador, que servia como dispositivo jurídico para legitimar a intervenção do monarca nos demais poderes.

O personalismo fica em evidência sobretudo durante o processo de independência, onde D. Pedro I fere os interesses nacionais em prol de seus interesses dinásticos. Um dos problemas de uma monarquia é a submissão da máquina pública aos particularismos do monarca.

O problema da independência foi o alto custo extra pago.

A independência da américa espanhola já era uma realidade e o mesmo seria questão de tempo para o Brasil, visto que já não havia ocupação militar portuguesa significativa no território e era de interesse da Inglaterra — principal potência da época e aliada de Portugal — normalizar as relações comerciais com o Brasil o quanto antes.

No entanto os ônus foram pesados: manutenção integral dos privilégios ingleses no Brasil, como tarifas especiais na alfândega e jurisdição extraterritorial, compromisso com a abolição do tráfico negreiro (questão caríssima às elites), assunção de parte da dívida portuguesa (Brasil já nasceu endividado) e ainda teria espaço para um capricho nobiliárquico: oficialmente foi D. João quem assumiu como primeiro imperador do Brasil, para em seguida transmitir o título “por livre vontade” a seu filho.

Havia algumas contrapartidas tácitas nessas negociações: D. Pedro conseguiu manter seu pleito ao trono português, que transmitiu à sua filha Maria da Glória após a morte de D. João; Conseguiu herdar o apoio dos liberais portugueses graças ao favor de seu pai e conseguiu manter a amizade com a Inglaterra. Todos esses elementos foram importantes para, anos mais tarde, vencer a guerra civil contra seu irmão D. Miguel e restaurar sua filha no poder.

No demais, o primeiro reinado não trouxe impactos significativos na prática, pois manteve velhas estruturas de poder tanto em âmbito interno, quanto externo. Mas isso não significou um governo tranquilo.

A promessa de abolir o tráfico negreiro desagradava a todos — os senhores se sentiam ameaçados e os abolicionistas nunca viram essa promessa cumprida —, o tesouro do governo vivia vazio, a vida pessoal do imperador era um escândalo, o autoritarismo irritava as elites regionais. Aí veio a Guerra da Cisplatina. Apesar do resultado militar ser considerado um empate, as consequências internas foram acachapantes. E o imperador viu que lhe restava um último ato para salvaguardar sua família: abdicar o trono em favor de seu filho.

Pedro, Pai e Libertador

A imagem positiva de D. Pedro também tem seus focos: liberalismo, patriotismo e a grande herança.

Você deve estar pensando: ele não era autoritário, raios? Sim. E liberal? Também. D. Pedro fez parte daquele conjunto de mandatários a que se pode chamar de “déspotas esclarecidos”, ou seja, monarcas tocados pelas ideias das luzes, o iluminismo. O regime do primeiro reinado era claramente um regime de transição do absolutismo para o constitucionalismo liberal. Uma transição que em muitos países ocorreu pela violência da revolução, mas que no Brasil ocorreu de forma ordeira.

Sua descrição à época era a de um príncipe “liberal de convicção, mas absolutista de temperamento”. Por isso se enfezou com os impasses da constituinte e a dissolveu, por isso outorgou uma Constituição ainda mais liberal do que a proposta pelo parlamento. Nela, estava garantida a liberdade de templos religiosos não-católicos, educação primária gratuita para todos os cidadãos e extensa proteção jurídica a direitos individuais e de propriedade, por exemplo.

A imagem heroica apela para o lado carismático de D. Pedro. É complicado falar em carisma de um cara que negligenciou tanto sua esposa, mas que sirva de atenuante a decência de se compadecer com a morte dela e expressar arrependimento, isso numa época em que era sombriamente comum maridos agredirem, violarem e até matarem suas companheiras.

A história romantizada recupera capítulos inusitados de sua vida. Quando adolescente, gostava de chamar os meninos da senzala para brigar, mas não obrigava ninguém e era pra valer — várias vezes teve que ir ao médico depois de apanhar. Caiu do cavalo mais de 30 vezes porque não conhecia limites para velocidade. Era comum causar desconfortos entre os nobres com seu comportamento grosso, muitas vezes pedia desculpas sinceras pela falta de educação. Foi um pai carinhoso e atencioso, inclusive para os filhos ilegítimos.

A intenção de focar nesses aspectos não é servir de entretenimento, mas argumentar que à época da independência, D. Pedro via-se como brasileiro e estava genuinamente tomado de sentimento nacionalista.

Finalmente sua maior obra, a independência. O preço foi alto? Sim. Valeu a pena? Sim. Se por um lado a independência brasileira de fato era questão de tempo, por outro, D. Pedro era o único artífice capaz de promovê-la sem o custo da guerra e do território nacional.

Não havia ninguém no Brasil em posição de liderança para guiar o movimento de forma inconteste, de modo que, caso D. Pedro fosse removido, haveria um vácuo de poder e as elites locais iriam se digladiar, tal como ocorreu na américa espanhola, tomada por caudilhismo. Além disso, a legitimidade dada pela antiga metrópole, Portugal, e pela potência hegemônica, Inglaterra, ajudou a blindar o país de patrocínios estrangeiros a grupos rebeldes.

Dom Pedro, o pai do Estado brasileiro, deixou esta grande herança para seu povo.

A imponente estátua equestre de D. Pedro I resiste na Praça Tirantes – RJ

Quem você escolhe?

Devemos ter muito cuidado com a nossa história. Saber criticá-la, sem atirá-la ao lixo. Saber amá-la, sem se calar aos defeitos. D. Pedro foi um personagem importante e ambíguo, que coleciona uma lista de críticas, mas também tem seus méritos. Só que acima de tudo, para o bem e para o mal, foi perdidamente brasileiro.

Notas

¹² O fato é que esses boatos existiram, comprovados em correspondências postais de variadas fontes. Entretanto, infelizmente não há provas materiais concretas dos atos em si, nem testemunhos oficiais, até porque algo do tipo seria completamente sufocado pelo Estado.

Referências Bibliográficas

RICUPERO, Rubens. A diplomacia na construção do Brasil 1750-2016. Versal. Rio de Janeiro, 2017.

DEL PRIORE, Mary. A carne o sangue. Rocco. Rio de Janeiro, 2012.

REZZUTTI, Paulo. D. Pedro – A história não contada. Leya. São Paulo, 2015.

Iago Dalfior

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